“Hoje de manhã, indo para o consultório, eu escutava na Radio Gaucha – Ao Vivo uma entrevista com o delegado responsável pelo caso da menina Naiara, de Caxias do Sul. Ter contato com o relato foi me deixando triste e cada vez mais nauseada, com um nó no estômago e na garganta. Disse para mim mesma que não deveria estar ouvindo os detalhes sórdidos relatados pelo delegado, passei a imaginar as cenas, me colocar no lugar impossível e enlouquecedor da vítima. Se eu, adulta, psicóloga, fiquei deste jeito, não consigo nem alcançar o pânico e o sofrimento que esta pequena passou com seu algoz. O nó na minha garganta nela fez-se em gritos inaudíveis de socorro.
Todo relato de estupro e abuso mexe com a gente, é humano e natural, somos criaturas empáticas (alguns mais, outros menos). Mas o que mexeu comigo também foi escutar o delegado se referir a este crime da seguinte forma: “após a relação sexual (…) antes da relação sexual que ele teve com ela”. Bah, isso mexeu demais comigo. Não acredito que o delegado use estas palavras por mal, talvez ele nem se dê conta da forma como isso reverbera. Mas palavras têm poder, poder de significado, de dar sentido às coisas e guiar o modo como percebemos e compreendemos o mundo. O que o abusador teve com Naiara não foi uma relação sexual, foi estupro, foi abuso sexual, jamais relação.
Relação diz respeito a uma troca, por exemplo, eu tenho relações sexuais COM alguém, é entre, é uma troca em que duas pessoas plenas de suas faculdades mentais consentem em relacionar-se. Dentro desta linha de raciocínio, um estuprador não mantém relações sexuais COM sua vítima, ele, num ato perverso, subjuga a vítima, faz dela seu objeto de desejo, ele não estupra COM a vítima, não há relação, não há entre e muito menos troca.
Desfaço o nó na minha garganta escrevendo isto, de modo que as palavras possam ser repensadas e elaboradas, pois palavras são incrustadas de significado, guiando a forma como os fatos são compreendidos. O que podemos pensar sobre o sentido de usar o termo relação sexual, é que este termo traz consigo o significado de troca e consentimento, e no caso de um crime sexual o lugar da vítima pode ficar dúbio e questionável, como muito se vê em manchetes noticiadas pela mídia sobre estupros e abusos sofridos por mulheres, por exemplo.
Não existe relação sexual entre um adulto e uma criança pois isto é impossível, a criança não tem maturidade suficiente (psíquica e fisicamente) para se relacionar desta forma com ninguém. Dito isto, que sigamos transformando o luto em luta, sempre.”
Luciane David, publicado no Facebook dia 22 de Março de 2018.