Quando meu pai morreu eu estava escutando uma paciente com todo meu coração e ouvidos, e com toda a condição que eu tinha de esquecer de mim mesma naquela hora. Eu sabia que as coisas não estavam bem com ele. Eu sabia que as coisas não iriam ficar bem _ assim, como não ficaram e até hoje, são dolorosamente diferentes e com um vazio que dói todos os dias.
Quando meu pai morreu eu estava trabalhando. Eu sou psicóloga.
Eu trabalho escutando a dor dos outros e tantas vezes escutei frases semelhantes a “você não entende a dor que sinto”. É uma afirmação justa. Ninguém é capaz de sentir o que o outro sente. É verdade. Justamente no dia e na hora mais dura que a vida me impôs, estava eu escutando.
Escutei com todas as minhas possibilidades.
Hoje entendo tanto meu trabalho. Entendo tanto o quanto é preciso deixar de se escutar para poder dar espaço para o outro; entendo tanto que meu trabalho é tão delicado e é tão precioso: consigo sentir o humano que existe em mim e o reconheço nas outras pessoas. A dor por si só não me fez melhor e duvido que simplesmente faça alguém melhor. É sobre o que se FAZ com ela.
A dor me fez entender com muito mais profundidade o respeito que tenho pelo meu trabalho.
A dor me fez estar mais presente do que eu supus poder estar. Ela alargou meus limites.
A dor me faz escutar com ouvidos, olhos, empatia e presença todas as histórias que chegam para mim, sem julgamentos, sem comparar dores ou intensidades. A dor é sua, e ela dói. Isso basta.
Quando meu pai morreu e eu soube de maneira oficial, eu não pude mais. Eu pedi para encarrar a sessão do meu paciente quase sem segurar o desespero que estava arrebentando meu peito e meu rosto.
Depois que meu pai morreu, voltei a atender ainda na mesma semana. Algumas coisas não quis retomar de imediato, mas as sessões dos meus pacientes, sim. A mãe de uma miúda mandou uma mensagem, perguntando-me se eu estava bem e se voltaria a atender ainda aquela semana. Respondi que, sim. E ela, “se você acha que isso é o melhor para você, nós também achamos, estaremos aí.”.
Aprendi com a minha dor que cuidado vem de todos os lados. Inclusive quando o paciente deixa ser escutado por você. Cuidei de outras pessoas, cuidei de miúdos e miúdas, e sem querer, eles me deram chance de eu seguir e, a cada dia, compreender com todo meu corpo, que minha profissão é sobre pessoas, é sobre o que as faz gente, o que as faz chorar, o que se perde, e o que se escolhe. Eu escolho ser uma profissional da psicologia e da psicanálise – da alma, do inconsciente, da escuta, dos encontros.
Poder estar presente, paradoxalmente, foi o que aprendi quando perdi um pedaço. Meu trabalho também é sobre presença: uma forma de cuidado que é sutil e vital.
Minha profissão é tão humana quanto qualquer um de nós. E a dor está sempre presente. De um lado, ou de outro.
Texto escrito dia 02 de Fevereiro, ao som de Pedro Guará de José Cláudio Machado;
Querida “prof” Bibiana! Segues me ensinando, transmitindo seu conhecimento de forma acessível e traduzindo em palavras o que, em muitos momentos, eu também senti e sinto: a vida inclui dores, perdas, sofrimento…mas também muitos encontros potentes, muita vida nas palavras, no outro, dentro de nós. Sinto pela sua perda, me solidarizo e te digo que compreendo a sua dor, de um jeito íntimo, por também já ter perdido quem me deu a vida, ambos. Mas, para além disso, além da capacidade de transformar a dor em palavras, a dor nos transforma em ainda mais humanos, o que nos promove a esperança de acolher, com ainda mais calor, a dor de quem nos chega.
Obrigada por compartilhar sua escrita, sobretudo, viva.
________________________________