Nesse momento histórico em que vivemos os atendimentos da área da saúde mental, psicanálise e demais áreas afins foram transferidos para o ambiente virtual de maneira maciça. Particularmente, não escutei ainda sobre algum colega que tenha colocado impedimento a essa modalidade frente às orientações de evitação do contágio pelo novo Covid-19. Eu também migrei maciçamente, na medida do possível, para o ambiente virtual, realizando os atendimentos de maneira online. Algumas diretrizes dos conselhos, associações e movimentos espontâneos e individuais (como lives e publicações, por exemplo) ajudaram bastante nesse momento, uma vez que para muitos de nós, esse é um território bastante novo e que ainda precisa de tempo para que ocorra uma apropriação mais identitária, diria assim.
Mas, há sempre a experiência particular, a sensação que cada um de nós colocará no seu trabalho e as impressões que esses atendimentos maciços suscitam. E é sobre eles que quero escrever e dividir nessa breve comunicação.
Buscamos estabelecer uma relação de transferência para que o tratamento efetivamente ocorra. E sei que isso é plenamente possível pela via online, comprovei isso através da prática clínica anterior ainda ao momento atual. Entretanto, há fatores objetivos que são perpassados por fatores subjetivos, e vice-versa, como a própria questão do setting. Por mais que exista em alguns casos uma orientação ao paciente sobre buscar um lugar seguro para sua sessão, isso nem sempre ocorre. Por qual razão o paciente não prestaria atenção nisso? Como a sessão se desenvolve? Como você garante o sigilo? Essas questões, no nosso habitat natural, nossos consultórios, raramente são alvo de dúvidas, uma vez que lá conseguimos garantir essa proteção, garantir essa segurança, logo, ela passa como algo desapercebido, naturalizado no setting – quando em verdade, não é.
No atendimento online o paciente terá uma postura muito mais ativa na procura por um ambiente seguro para sua sessão.
No contexto no qual estamos vivendo, em quarentena, atendemos em casa – a maioria de nós, ouso dizer. Esse também é outro ponto interessante: os analistas e psicoterapeutas estão mais expostos – sua vida pessoal está mais exposta. Percebi o quanto os nossos consultórios nos proporcionam muita tranquilidade e segurança, garantindo uma neutralidade muito significativa. Nos nossos ambientes domésticos, por mais cuidadosos que sejamos, muitas variáveis estão em cena simultaneamente, até mesmo porque toda a família está em quarentena com você. O gato passa na frente da câmera, o cachorro fica acoando como se estivesse descobrindo essa capacidade pela primeira vez, batem à porta, seu filho te chama ou entra solicitando sua ajuda, há quadros, fotos, livros em torno – sua roupa e demais adereços são os mesmos que usa habitualmente? Ainda que a mudança seja muito sutil nesse último item, o paciente perceberá algo, sentirá, experienciará essa entrada na sua casa. O paciente também estará em um ambiente que é dele, doméstico, íntimo, conhecido por nós habitualmente somente nas descrições realizadas por eles – ou nem isso, somente fantasiado por nós. Todas as situações que eu apontei para nós, vale igualmente para os pacientes. É a vida se apresentando na cena analítica de uma forma única.
O ambiente de vocês é um território novo. A intimidade do setting deverá ser pensada, trabalhada e deverá ainda haver espaço para a fantasia.
Essa pandemia só fez desacomodar: nossos conhecimentos, nossos confortos, nossa onipotência, nossa segurança, nossas verdades. O nosso setting não será mais o mesmo, assim como a vida. Estamos todos contaminados, ainda que subjetivamente: há um vírus real e simbólico que tomou conta do mundo e alterou nossas formas relacionais. Não seremos mais os mesmos, pois, quer queiramos ou não, já estamos modificados.